sábado, 29 de março de 2008

EM TÔRNO DE ALGUNS TÚMULOS AFRO-CRISTÃOS



 
 
 
EM TÔRNO DE ALGUNS TÚMULOS AFRO-CRISTÃOS [1]


PREFÁCIO
Era natural que percorrendo, como percorri, de 1951 a 1952, grande parte do Ultramar Português, atravessando, para atingi-lo no Oriente e na África, outras áreas tropicais ou quase tropicais - o Egito, a Arábia Saudita, o Paquistão, a União Indiana, o Senegal, as Rodésias, a África do Sul, a Libéria, o Congo Belga, que fiquei também conhecendo de perto - minhas observações de paisagens e populações, de costumes e estilos de vida, nesses países e nessas áreas, se processassem dentro da hipótese de trabalho que levantei no início da mesma viagem de estudo, em conferência proferida no Instituto de Goa. Essa hipótese de trabalho, eu a confirmaria - como critério de interpretação de um complexo binacional à base da evidência de constituírem o Brasil e os vários Portugais uma área de cultura em grande parte condicionada pela sua ecologia tropical - em conferência lida na Universidade de Coimbra - "Em tôrno de um novo conceito de tropicalismo" - após aquela longa, e para mim, proveitosa viagem.
No trabalho que se segue, recordo algumas das observações diretas de paisagens e populações luso-orientais e luso-africanas, que me levaram a sugerir a caracterização do mesmo complexo como complexo binacional de civilização, para o qual sugeri a denominação, inevitàvelmente pedante, de luso-tropical; e que - mais do que isto - me parece constituir base ou motivo para possível subciência. Subciência que, dentro de uma possível Tropicologia, geral, se denominasse Luso-tropicologia, tendo por ciência intermediária, uma também possível e até necessária Hispano-tropicologia. É uma sugestão, esta, que vem merecendo o apoio de antropólogos, sociólogos e ecologistas da Europa e dos Estados Unidos; e também do Brasil. Recentemente teve a aprovação de cientistas sociais de Oxford, Paris, Londres, Holanda, Bélgica, Itália, Portugal, Estados Unidos, assim como da África e do Oriente, reunidos na Europa em conclave de caráter estritamente científico, em tôrno de problemas de pluralismo étnico e cultural, sob os auspícios do Instituto Internacional de Civilizações Diferentes, com sede em Bruxelas.
A documentação fotográfica que recolhi no Oriente e na África - e parte da qual acompanha o texto do trabalho que se segue e é nele publicada com o maximo possivel de nitidez, graças ao Professor Pinto de Aguiar - recolhi-a dentro da preocupação de reunir material de valor comparativo para estudos do comportamento e da cultura dos vários grupos ou das diversas sociedades que, no Oriente, na África, na América, parecem constituir hoje o sugerido complexo luso-tropical; ou seja, uma comunidade luso-tropical caracterizada por um quase sistema de relações simbióticas de grupos étnico-culturais uns com os outros e de todos com o ambiente ou o meio tropical. Daí fotografias - que constam daquele material de viagem de estudo e algumas das quais são agora publicadas - sôbre os diferentes estilos que caracterizam o uso do pano à cabeça por mulheres do povo num arquipélago-síntese, como Cabo Verde: estilos que devem ser comparados com os ainda em uso no Brasil. Fotografias - nem sempre tècnicamente boas - do trajo de mulheres, cristãs ou não, da Índia que parecem ter tido influência sôbre o trajo de mulheres do povo de alta categoria em áreas luso-africanas como Moçambique e o Brasil; de tipos castiçamente indianos de palanquins dos quais se derivaram os brasileiros com suas variantes; do interior de tempos hindus, que visitei, e que me impressionaram como tendo talvez provocado nos Católicos o desejo de fazerem o interior de suas igrejas rivalizar com o desses templos - e superá-los - em fausto e pompa; de tipos de africanos em fase de assimilação do estado "primitivo" ao "civilizado", luso-tropical, africanos em transição cujos trajos talvez possam ser utilizados por continuadores do meu amigo Flávio de Carvalho, como sugestões para experimentos em tôrno do vestuario idealmente ecológico para o homem civilizado nos trópicos: vestuario que o Brasil está quase na obrigação de ser o primeiro povo a inventar, através de combinações inteligentes de estilos mestiços de indumentaria já desenvolvidos em areas de civilização luso-tropical. A tais fotografias acrescentei, na minha colheita de material antropologico durante aquela longa viagem de estudo, aquelas que me parecem ilustrar o modo por que portuguêses de hoje procuram dominar, pela técnica, desertos tropicais como o de Angola, servindo-se, em alguns casos, de experiência ou de experimentos brasileiros; e noutros, realizando obra pioneira de que os técnicos brasileiros precisam de inteirar-se. De qualquer modo, realizando obra caracterìsticamente luso-tropical pelo que continuam a juntar de lusitano a paisagens e culturas tropicais; pelo que continuam a conservar e desenvolver, dos nativos dos tropicos, de artes tanto das chamadas maiores como das denominadas menores, sob o aspecto de artes simbiòticamente lusotropicais. Dessas fotografias várias serão publicadas noutro trabalho, por se referiram menos a uma arte especifica, como é a do tumulo, que a experimentos de caráter não só artístico como científico que se vêm realizando naquelas áreas de civilização luto-tropical.
Êste aspecto de assunto tão complexo como é o conjunto que forma uma civilisação luso-tropical - a arte luso-tropical - foi aliás o tema de todo um curso em que, servindo-me através de projeções de documentário fotográfico quase de todo inédito, procurei considerar problemas de "Sociologia da Arte aplicada a situações luso-tropicais". Êsse curso realizou-se na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife, no mês de outubro de 1957, por iniciativa do seu ilustre diretor, naquela época o Professor João Alfredo, com o apoio do então Magnífico Reitor Joaquim Amazonas, que presidiu a sua inauguração. Foi um curso em que se inscreveram 150 estudantes e foi por êles e por numerosos ouvintes seguido com o maior interêsse: interêsse provocado pelo tema. A êsse curso se seguiram novas conferências sôbre o assunto, estas proferidas na Escola de Teatro da Universidade da Bahia, em 1958, por iniciativa do seu Magnífico Reitor, o Professor Edgar Santos, e com a valiosa colaboração do diretor da mesma Escola, o Professor Martim Gonçalves; e também uma serie de conferências, igualmente ilustradas, proferidas no Museu de Arte de São Paulo, a primeira das quais presidida pelo Deputado Horacio Lafer que encareceu a coveniencia de ser a matéria versada pelo conferencista conhecida por um publico maior.
Daí outra iniciativa do Reitor Edgar Santos: a de publicar a Universidade da Bahia grande parte do material fotográfico e algumas das notas que venho reunindo sôbre temas luso-tropicais, do ponto de vista da Sociologia da Arte em particular, e da Antropologia ou da Sociologia Cultural, em geral - as que se referem aos túmulos afro-cristãos de Moçamedes - como edição da Imprensa Universitária da mesma Universidade da Bahia. Devo salientar que algumas das notas que se seguem foram lidas e algumas das fotografias, que as acompanham, exibidas, em conferências proferidas pelo autor no Instituto Joaquim Nabuco de Ciências Sociais, depois de terem sido objeto de pequena comunicação de caráter antropológico, em inglês, também acompanhada de ilustrações, sôbre túmulos afro-cristãos de Moçamedes, ao Professor Evans-Pritchard, o sábio catedrático de Antropologia da Universidade de Oxford, quando tive a honra de ser recebido por êle e pelos seus principais colaboradores, no Departamento de Antropologia da mesma Universidade, em maior de 1956. Outras notas e fotografias sôbre temas luso-tropicais da arte serão publicadas pelo Museu de Arte de São Paulo.
É claro que à observação de tais aspectos do comportamento português no Oriente e na África - os de interesse artistico - juntei o afã de procurar surpreender o modo lusitano de proceder com relação a orientais e africanos cristianizados e não-cristianizados. E creio ter encontrado confirmação para a sugestão de que é um modo de proceder sociòlogicamente mais cristocêntrico que etnocêntrico, em contraste, por exemplo, com o dos Protestantes holandeses, neste particular influenciados pela Igreja Holandesa Reformada.
Sto. Antônio de Apipucos (Recife), 1959.

EM TÔRNO DE ALGUNS TÚMULOS AFRO-CRISTÃOS DE UMA ÁREA AFRICANA

Um dos elementos que concorreram para a transculturação, de valores brasileiros em áreas ou entre populações africanas, através de agentes que do Brasil regressaram à África ou ainda aí se transferiam foi o colono português ou o brasileiro branco, proprietário de escravos no Brasil, ao deslocar-se do Basmera a África juntamente com êsses escravos - além de móveis de jacarandá, vasilhas de barro, rêdes do Ceará, balaios e cestas de feitio ameríndio, mudas de plantas, papagaios; ou apenas com idéias ou noções ou métodos, adquiridos na América Portuguêsa, de lidar com escravos, alojá-los em senzalas complementares de casas-grandes, alimentá-los, vesti-los, iniciá-los em capelas particulares ou em oratórios das mesmas casas, mas práticas, e ritos luso-Católicos, fazê-los trabalhar em lavouras tropicais, com objetivos europeus.
Houve vários casos dessa espécie - de transferência às vêzes como que global de colonos estabelecidos no Brasil para a África - entre os quais casos de brasileiros, filhos de portuguêses, e portuguêses casados com brasileiras de famílias antigas e de velhos habitos patriarcais-rurais ou patriarcais-agrários. Alguns dêsses portuguêses e brasileiros transferiram-se na primeira metade do século XIX de Pernambuco para Moçamedes. Aí se encontram em cemitério aristocrático, túmulos de estilo convencionalmente luso-Católico, de vários brasileiros, alguns de famílias fidalgamente rurais; e são vários os descendentes dêles, na população atual de Moçamedes.
Ainda hoje se encontram, também, nas "hortas" ou fazendas pequenas ou médias de descendentes de "brasileiros" naquela parte da Angola fortes traços de influência brasileira, não só sôbre a paisagem ou a vegetação africana - abrasileirada pela presença da mandioca, do tabaco, do cajueiro - como sôbre os estilos luso-africanos de vida, de economia e de comportamento. Inclusive o comportamento de serviçais africanos, alguns dêles continuadores de escravos africanos ou de descendentes de africanos que, ou acompanharam seus senhores na aventura de deixar o Brasil pela África, em face de surtos brasileiros de anti-lusismo; ou foram influenciados pelos métodos brasileiros de assimilação dos escravos a uma terceira cultura, nem européia nem ameríndia, porém luso-brasileira, com possibilidades de generalizar-se fàcilmente naquela cultura geral que venho denominando luso-tropical.
A generalização de cultura luso-brasileira em cultura luso-tropical ocorreu, com alguma freqüência, através de regressos quer involuntários - de escravos que acompanharam senhores do feitio dos que se estabeleceram em Moçamedes, em suas transferências do Brasil para outras áreas de colonização portuguêsa ou européia - quer voluntários: de ex-escravos ou de descendentes de escravos que se deslocaram do Brasil para essas outras áreas, maternalmente africanas, conservando-se, porém, com certo brio étnico-cultural, "brasileiros"; e não se deixando reintegrar de todo nas culturas ou sociedades maternas da África.
A situação dos descendentes dêsses "brasileiros" é assunto não apenas para pequeno ensaio, mas para obra extensa, longa e sistemática, em que se considere e estude o assunto nos seus vários aspectos socioculturais e psicossociais ou psicoculturais. Assunto complexo.
O que se poderá fazer, sob o critério de existir hoje uma cultura luso-tropical, particularmente favorável a subgrupos como os formados por tais "brasileiros" e por luso-indianos na África. São subgrupos que, fora dessa cultura - a luso-tropical - tendem a sentir-se mais ou menos desajustados ou "marginais", embora alguns individuos, membros dêsses subgrupos, tenham se tornado notáveis - mesmo como marginais - em subsistemas anglo-africanos e franco-africanos de cultura, depois de terem estudado - vários dêsses individuos - na própria Europa francesa ou inglêsa. A verdade, porém, é que raramente parecem desprender-se de todo de sua condição de luso-tropicais.
Em viagens de observação pela África, em 1951 e em 1952, procurei surpreender, com particular atenção, nas várias regiões que tive o gôsto de visitar, traços da presença dêsses "brasileiros". Os sinais de influência brasileira na paisagem, na economia, na cultura - cultura no sentido antropológico ou sociológico - de sociedades ou de áreas africanas, nem tôdas elas atualmente sob bandeira portuguêsa são por vezes evidentes.
Surpreendi vários dêsses traços, alargando assim o conhecimento de assunto há tempo entrevisto ou contemplado como tema ideal para uma pesquisa intensa e extensa. Na mesma época - 1951 - versei-o em nota prévia destinada ao grande público e publicada com excelentes fotografias de um companheiro francês de estudos afro-brasileiros, M. Pierre Verger, na revista O Cruzeiro, do Rio de Janeiro: notas que, ampliadas, constam da segunda edição de Problemas Brasileiros de Antropologia. E ainda agora lamento que não me tivesse acompanhado naquela viagem um Pierre Verger ou um Benício Whatley Dias ou um L, Cardoso Ayres, capazes de fixar em fotografias de valor científico para estudos antropológicos ou sociológicos, aspectos dessa transculturação interessantíssima. Ou - sob criterio mais lato - aspectos do à-vontade com que africanos ou descendentes de africanos, tocados no Brasil de influência luso-brasileira ou brasileira - que foi uma influência predominantemente européia e cristã em espaço tropical americano - mas não desafricanizados em motivos essenciais de vida, vêm dando expansão, na África, diretamente ou através de filhos, netos, bisnetos, tetranetos, ao seu estado cultural quase sempre intermediário, mas raras vêzes "marginal" no sentido cru de angustiado ou desprezado pelos grupos dominantes ou pelas culturas puras.
As fotografias que ilustram estas notas, sem serem - a não ser as que me foram gentilmente cedidas pela Agência Geral do Ultramar, de Lisboa, cujo arquivo é opulento - das que poderia nos ter dado, sôbre tema tão sugestivo, a arte-ciência de um Pierre Verger ou de Benício Whatley ou de um L. Cardoso Ayres, valem, entretanto, como primeira documentação fotográfica em tôrno de assunto que suponho estar ainda virgem de pesquisa verdadeiramente antropológica ou sociológica: os túmulos afro-cristãos de Moçamedes e as esculturas e pinturas afro-cristãs afins das que se encontram nesses túmulos, em contraste com as convencionalmente européias dos cemitérios ortodoxamente Católicos. Devo a maioria delas - para documentação desta simples nota prévia - à gentileza do Serviço de Publicidade da Província de Angola, cujo diretor me proporcionou a colaboração de um dos seus mais hábeis fotógrafos. Meus agradecimentos ao mesmo Serviço e ao fotógrafo que pacientemente me acompanhou em dias de sol intenso, em excursões que lhe devem ter parecido estranhas, não só pelas fazendas ou "hortas" como pelos cemitérios de Moçamedes; quer o Católico pròpriamente dito cheio de túmulos de brasileiros do Norte do Império que morreram luso-angolanos e cuja descendência é hoje luso-angolana ou lusitana, e aos quais se deve atribuir considerável importância como transmissores de brasileirismos à paisagem e à população, quer branca, quer de côr, do litoral da Angola - quer o que prefiro denominar "afro-cristão", a chamá-lo simplistamente "indígena", como é costume em certos meios mais requintadamente europeus da Angola. Às fotografias de túmulos dos dois cemitérios, um convencionalmente cristão e convencionalmente europeu em sua arte fúnebre e em sua simbologia do interêsse antropológico e de significado sociológico, outro, misto nessa arte e nessa simbologia, pareceu-me conveniente acrescentar fotografias de esculturas angolanas, quer apologética do Cristianismo, quer, a seu modo um tanto críticas do Cristianismo quando encarnado por puros europeus. São fotografias de esculturas que pude examinar de perto, na Exposição de Arte Sacra Missionária que, em 1951, se realizou em Lisboa, organizada, de modo admirável, pelo Diretor da Agência Geral do Ultramar, Dr. Banha da Silva, às quais estimaria juntar as de esculturas fúnebres, de remota influência cristã, que o diretor do Museu Etnográfico de Dundo, o Sr. José Redinha, vem reunindo nas suas coleções: excelentes coleções que marcam valioso serviço da Companhia dos Diamantes à ciência etnográfica ou antropológica. Aliás duas peças da pequena coleção particular de esculturas africanas que em Apipucos se junta aos meus também poucos objetos de arte ameríndia - poucos porém não de todo vulgares - devo-os à gentileza do etnólogo José Redinha. O Professor Melville J. Herskovits surpreendeu-se tanto de ver no Brasil tais esculturas africanas que as supôs cópias de originais, feitas para turistas ou diletantes.
Sem pretender fixar-me no aspecto pròpriamente histórico da migração interluso-tropical que representou, em 1849 e 1850, a transferência de dois grupos consideráveis de portuguêses e brasileiros, de Pernambuco para a Angola - acêrca do que se encontram, além da documentação esclarecedora incluída no livro de Manuel Júlio de Mendonça Tôrres, O Distrito de Moçamedes nas Fases da Origem e da Primeira Organização (1485-1859), documentos MSS no Arquivo da Câmara Municipal de Moçamedes, por mim examinados [2] - recordarei apenas, apoiado nessa documentação e na que vem sendo recolhida no Brasil pelo Professor J. A. Gonsalves de Melo, ter sido a mesma migração de elementos capazes e saudáveis e animados tão sòmente de sentimentos de repulsa aos exageros do nativismo então dominante entre alguns pernambucanos. Mendonça Tôrres, porém, deixa de ser inteiramente exato a respeito dêles quando afirma [3], terem os "colonos" que no meado do século XIX se transferiram do Norte do então Império brasileiro para a África, tornando em alguns anos Moçamedes "uma imagem viva e doce da Pátria", isto é, de Portugal, "pela introdução de usos e hábitos nacionais". A verdade é que êsses "colonos" introduziram em Moçamedes não apenas usos e costumes do Portugal europeu como do Brasil; e nessa obra de transculturação parecem ter sido auxiliados de modo nada desprezível pelos brasileiros, quer brancos - espôsas, filhos, parentes, etc. - que os acompanharam, quer pelos criados e serviçais. De alguns daqueles colonos sabe-se que se especializaram, como Bernardino de Figueiredo, em cultivar muito brasileiramente, em Moçamedes, algodão e cana de açúcar; e com tal sucesso que amostras de algodão da fazenda e do açúcar do engenho do mesmo Figueiredo figuraram em 1865 na Exposição Internacional do Pôrto. De modo igualmente brasileiro parecem ter se requintado êsse e outros "colonos", idos do Norte do Brasil, em receber com mesa lauta amigos e estranhos em suas casas-grandes de feitio patriarcalmente pernambucano: casas-grandes completadas por senzalas. Daí terem se tornado famosos os banquetes na casa-grande da Fazenda dos Cavaleiros, de propriedade de Figueiredo; e em visita há poucos anos a Moçamedes tive notícia de terem sido essas fazendas centros de irradiação não só da lavoura de algodão e da de açúcar, como de outras lavouras brasileiras, de alimentação e de gôzo; e de costumes e ritos luso-brasileiros de agricultura e de vida rural.
Êste o ambiente que parece ter concorrido para animar em africanos cristãos de Moçamedes o desejo, que realizaram, de ter cemitério próprio. E de edificarem aí túmulos em que se projeta sua situação de subgrupo de cultura intermediária, isto é, já cristã e européia, mas ainda africana e animista. É para essa cultura - para a sua complexidade - que parece ter concorrido o contacto particularmente intenso do mesmo subgrupo de população luso-africana com o Brasil, do qual se transferiram para Moçamedes valores e estilos de convivência ainda hoje visíveis nessa subárea luso-angolana.
Uma das expressões mais dignas de estudo da situação intermediária de cultura - cultura afro-cristã - característica de considerável subgrupo da população de Moçamedes, repita-se que é a que se nota naquele cemitério a um tempo cristão e africano, em cujos túmulos, aos símbolos cristãos se juntam, com valor simbólico ora menos, ora mais evidente, não só desenhos de traço africano como urnas e receptáculos destinados menos a flôres, dentro do ritual cristão de culto aos mortos, que a ofertas de outro gênero - alimento, inclusive - como em rituais fúnebres africanos. Talvez o referido cemitério seja, neste particular, uma das expressões biculturais mais interessantes que hoje se encontram em qualquer parte.
Do ponto de vista artístico, os túmulos afro-cristãos de Moçamedes lembram, de modo nítido, com suas pinturas e esculturas coloridas, seus azues e seus vermelhos vivos, desenhos e pinturas do artista brasileiro Cícero Dias, parecendo essa semelhança favorecer a opinião dos que enxergam influência africana na arte dêsse pintor nascido em casa-grande de Pernambuco e criado sob sugestões e influências de serviçais de côr, continuadores, sob vários aspectos do seu comportamento e da sua cultura, de escravos africanos ou de origem africana, outrora parte essencial das casas-grandes patriarcais de engenho, fazenda e sítio do Brasil. Lembram também pinturas de Lula Cardoso Ayres, da fase em que êsse pintor estêve mais próximo das formas e côres da cerâmica popular do interior agrário de Pernambuco e da representação da figura humana nessa cerâmica por vêzes pintada. A presença de vermelhos e azues, de amarelos e verdes nos túmulos afro-cristãos de Moçamedes, contrasta com a brancura caracteristica dos jazigos do Cemitério europeu e Catolico da mesma cidade, fazendo-nos pensar na revolta do sociologo brasileiro Professor Guerreiro Ramos, numa das paginas do seu "O Negro desde dentro", capitulo de Introdução critica á sociologia brasileira, contra "a brancura como simbolo do excelso" e até do santo ou do sagrado. Concepção que, incluindo a própria ideia ou imagem de Deus - um Deus em branco - é pelo mesmo sociologo associado à concepção do sagrado de povos brancos impostas a gentes de côr. O Cemitério afro-cristão de Moçamedes não prima pela brancura dos seus túmulos mas afasta-se dessa convenção europeia juntando a símbolos de fé cristã côres vivas, nas quais se exprime uma concepção do sagrado diferente da europeia. Diferente da europeia mas não propriamente anti-cristã ou anti-Católica.
É possível que, se aos descendentes cristianizados de escravos africanos tivesse sido dada, no Brasil, a oportunidade de levantar seus próprios túmulos, as formas e côres decorativas e algumas simbólicas e talvez rituais dêsses túmulos rústicos, espontâneos e, a seu modo, barrocos, houvessem se desenvolvido de modo semelhante às dos túmulos do cemitério afro-cristão de Moçamedes. Como é possível que alguns dos túmulos afro-cristãos de Moçamedes acusem influências brasileiras sôbre a população africana daquela área. Influência que houve noutros planos - como, por exemplo, sôbre a arquitetura e a alimentação, quer de brancos, quer de pretos e pardos ou mestiços - e chegou a ser considerável, exercida como foi, não só por portuguêses da Europa e negros da África, que se transfeririam do Brasil para a África, ou a ela regressaram, como por brasileiros nates, alguns de famílias já rural e telúricamente brasileiras, que acompanharam pais, esposos, sogros e outros parentes portuguêses, em sua aventura de transferência total do Brasil para Moçamedes.
Lembram também os túmulos afro-cristãos de Moçamedes pinturas e esculturas populares brasileiras: de zonas do Brasil mais marcadas pela influência africana. Pinturas de baús, ex-votos, tabuletas comerciais, bandeiras de santos, estandartes de clubes de carnaval. Lembram esculturas pintadas, santos e madonas rústicas, esculpidas por santeiros brasileiros. Isto tanto no traço como nas predominâncias de côres.
Note-se, ainda, que as esculturas nos túmulos afro-cristãos de Moçamedes parecem confirmar, sob alguns aspectos, a sugestão de Ladislas Zzecsi, nas suas notas "The Term "Negro Art" is essentially a non-African concept", de que as figuras de escultura negra tidas por arte intencional ou deliberada por alguns intérpretes europeus, não são criadas pelos supostos artistas com outra intenção senão a religiosa. O que o suposto artista deseja é dar abrigo nessas esculturas ao espírito do seu antepassado. Êle esculpe "for the purpose of housing the spirit of his ancestor, who might thus return do guard the members of his family" [4]. (4)
Observa o mesmo autor a constância de formas tribais nos diferentes estilos de arte de escultura entre os negros africanos. Essa constância sobreviveria a outras assimilações: de língua e de costumes.
No caso das esculturas afro-cristãs dos túmulos do cemitério de Moçamedes, motivo principal destas notas à margem dessa e de outras influências brasileira na paisagem, na economia e na cultura de subáreas luso-africanas de Angola, parece exprimir-se aquela constância de formas africanas tribais. Parecem algumas das esculturas naqueles túmulos, simbolizar estilizadamente, espíritos de antepassados, evocados menos em suas semelhanças de fisionomia individual ou mesmo familial que étnica; e menos em traços étnicos que através de insígnias dos seus ofícios e sobretudo - elemento novo, europeu, tanto quanto possível harmonizado com os antigos de sua nova fé ou religião - a de insígnias cristãs, na sua expressão Católica, Apostólica, Romana. Por conseguinte, através de símbolos como a Cruz, o Cristo na cruz, a Madona com o Menino Jesus. Isto, talvez, dentro de já antiga tradição vinda de dias remotos da colonização portuguêsa da África.
Observe-se de algumas das populações da área luso-angolana que, como as populações do Congo, vêm sofrendo em sua cultura - inclusive em sua arte - influência portuguêsa desde o século XVI: antes mesmo dessa influência ter-se tornado luso-brasileira, através dos muitos contactos que se desenvolveram entre a Angola e o Brasil. Em seu "Essay on Styles in the Statuary or the Congo", publicado na Negro Anthology, organizada por Nancy Cunard e publicada em Londres em 1934, é o que destaca o belga Henri Lavachery, dos Reais Museus de Arte e História da Bélgica: que no litoral do Congo Belga e da Angola "a realism of ancient importation continues to be manifest in the heads of sculptured figures" em contraste com "the bodies of the big village charms and famous studded fetiches" que "are all too frequently characterized by the grossest formalism". Êste contraste se encontra de modo menos agudo nas esculturas dos túmulos luso-cristãos de Moçamedes, num dos quais parece confirmar-se outra generalização do observador belga relativa ao enclave português de Cabinda: "certain articles of the 16th century Portuguese attire were still the fashion" até data relativamente recente. Aí, "it was the habit of certain artists, in the absence of the living model, to surround the heads of their figures with coiffures of a most phantastic and decorative art" [5]. Na Angola notam-se arcaísmos de trajo de gala, que acusam influência portuguêsa remota, quer entre viúvas, quer entre pescadores de Luanda, por exemplo; e dêsses arcaísmos de trajo pareceu-me haver traços em certas figuras esculpidas em túmulos afro-cristãos de Moçamedes. É aspecto que pede estudo mais demorado e minucioso.
Os símbolos de trabalho das pessoas falecidas, nos túmulos afro-cristãos de Moçamedes, talvez correspondam ao rito, dominante entre sociedades africanas da África Ocidental, de deverem ser tais pessoas acompanhadas no seu sepultamento de sinais ou insígnias de sua posição. Como observou o Professor K. L. Little da Universidade de Edimburgo, no seu excelente The Mende of Sierra Leone, a west African People in Transition [6], na sociedade por êle estudada em fase de transição, não só "the deseased should be sent on his way with ceremonies appropriate to his earthly rank" mas "he should also cay with him some token of his position". E o Professor Meyer Fortes, em The Web of Kinship among the Tallensi [7], já destacara que entre os Tallensi - "typical of the great congeries of Mole-Dagbanespeaking peoples that occupy the Northern Territories of the Gold Coast" e que constituem "a completly homogenous community of sedentary farmers" - "a person's status is most conspicuously proclaimed at his or her death. . ."
Aqui é que parece ter se integrado de modo sociològicamente interessante a projeção de um rito africano numa arte ritual cristã como é a do túmulo de pedra que, por sua vez, se presta à expressão de uma arte africana a serviço, quase sempre, entre negros africanos, de motivos ou objetivos religiosos e rituais, social ou tribalmente simbólicos: a escultura. A escultura fúnebre às vêzes completada pela pintura que pelas côres avive intenções simbólicas, em vez de serem côres simplesmente decorativas.
Quanto ao fato das urnas junto aos túmulos afro-cristãos de Moçamedes poderem ser utilizadas para outras homenagens ou ofertas à memória ou ao espírito dos mortos, além das flôres - segundo o rito cristão - tal possibilidade se conciliaria com a crença, comum a várias sociedades africanas da África Ocidental, de que tais espíritos retêm, como lembra o já referido sociólogo e antropólogo inglês, Professor Little, "their anthropomorfic character". Mais: "an ancestor's status lasts as long as the dead are remembered. . .". E os túmulos são por algumas dessas sociedades identificados com as casas ou as habitações humanas, de modo semelhante ao que sucede entre cristãos, podendo-se assim verificar, em tôrno dessa crença comum a sociedades predominantemente agrárias e sedentárias nos seus sistemas de economia e nos seus principais motivos de vida, manifestações de zêlo por êsses mesmos túmulos, e em tôrno do que elas simbolizam, também aparentemente comuns; e nas quais se confunda o sentido da homenagem africana - a palavra "homenagem" vai aqui empregada com o sentido antes sugestivo que exatamente descritivo - de caráter ainda animista com a da homenagem cristã de caráter espiritualista. A mesma confusão pode ocorrer entre o culto à Virgem Maria - Mãe de Deus, de Jesus, dos Homens - culto que me pareceu um dos característicos mais cristãos das esculturas do Cemitério Afro-cristão de Moçamedes - e reminiscências, porventura persistentes entre os afro-cristãos dessa subárea, da identificação matrilineal de vivos e mortos com a Mãe: identificação de que fala o Professor Meyer Fortes, noutro dos seus trabalhos de Antropologia social, baseado em pesquisa de campo na África: The Dynamics of Clanship among the Tallonsi [8].
Em indagações realizadas para trabalho de colaboração com o autor destas notas sôbre descendentes de africanos e africanos que regressaram do Brasil à África no tempo da escravidão no Brasil patriarcal, o pesquisador francês Pierre Verger constatou a transformação, entre grupos de "brasileiros" por êle estudados mais de perto, do culto baiano de Nosso Senhor do Bonfim no de Nossa Senhora do Bonfim. No Cemitério afro-cristão de Moçamedes o culto cristão à Mãe de Deus parece ser associado ao culto aos mortos, nas esculturas sôbre seus túmulos, como um pendor para êsse culto que se assemelha, talvez, ao que resultou naquela transformação do culto baiano do Senhor - isto é, do Pai - num culto afro-brasileiro, de origem baiana, da Mãe, sob a figura de Nossa Senhora do Bonfim.
Parece-me que é pela sua confusão de símbolos que o Cemitério afro-cristão de Moçamedes - subárea angolana particularmente tocada (repita-se) por influência brasileira - melhor se apresenta como tema antropológico rico de sugestões. Diante dêsses símbolos assim biculturais, em conciliações ou confusões significativas em mais de um sentido - o estético e o político-social - em tôrno do culto dos mortos, parecem adquirir particular significação as palavras com que, em seu inteligente artigo sôbre "Symbolism", para a Encyclopaedia of Social Sciences [9], Edward Sapir escreveu com a penetração característica da sua inteligência: "It is important to observe that symbolic meanings can often be recognized clearly for the first time when symbolic value, generally inconscious or conscious only in a marginal sense, drops out of a socialized pattern of behavior and of the supposed function. . .".
Nessa situação de símbolos em processo de serem desencarnados dos objetos de suas funções, mas ainda não de todo mortos como formas de etiquêta, é que talvez se encontrem os símbolos africanos de caráter tribal que persistem em associar-se, em túmulos afro-cristãos de Moçamedes, aos puros símbolos cristãos ou Católicos. Neste caso êles se apresentariam como "conscious only in a marginal sense", para usarmos a expressão de Sapir. Sua validade deixaria de corresponder aos motivos religiosos básicos de sua primitiva forma tribal e complexa para apenas anunciarem o status pessoal de maneira inteligível a olhos de africanos ainda impregnados de cultura tribal; ou de suas sobrevivências que, em situações socioculturais como as luso-tropicais, são muitas vêzes sobrevivências permitidas ou toleradas de fato, embora oficial ou teòricamente repudiadas, por autoridades eclesiásticas ou civís mais zelosas da ortodoxia cristã e da uniformidade européia de comportamento: inclusive de etiquêta.
Não é absurdo admitir-se que o estudo minucioso, seja dos ritos fúnebres - inclusive da arte dos túmulos e do culto aos mortos ligado a essa arte - seja de outras formas de etiquêta e de simbologia social entre os afro-cristãos de Moçamedes, venha a revelar a presença, nesses ritos ou forma e na arte daqueles túmulos, de traços de cultura brasileira, adquiridos quer impessoalmente, quer através de pessoas ou de personalidades marcantes de origem ou formação brasileira ou mestiça: afro-brasileira.
O antropólogo Paul Radin, ao estudar ritos fúnebres entre os Winnebago - material que anos depois de recolhido viria a apresentar num livro que ao interêsse científico junta o literário ou poético: The Road to Life and Death. A Ritual Drama of the American Indians [10] - verificou a presença, nos mesmos ritos, de traços de influência cristã indireta. Para o que encontrou evidência semi-histórica em narrativa referente à participação de certo mestiço franco-ameríndio no desenvolvimento do drama ritual dos mesmos Winnebago no sentido do encontro ou da síntese das duas culturas: a Winnebago e a européia cristã. Dessa participação. Radin diz ter correspondido à "need of a new religious and philosophical synthesis" [11], experimentada pelos Winnebago.
Necessidade semelhante parece ter sido experimentada pelos afro-cristãos de Moçamedes: sobretudo os que se encontraram no século XIX em maior contacto com a cultura afro-brasileira mais penetrada pelo Cristianismo ou pelo Catolicísmo. Os túmulos do Cemitério afro-cristão talvez devam ser considerados principalmente isto: resposta, ou tentativa de resposta, sob forma artística, ao que deve ter se extremado entre alguns daqueles elementos afro-cristãos da população de Moçamedes no que Radin chamaria "the poignant needs of a people facing a soul-trying ordeal".
N o t a s
1 Publicado em Lisboa, 1950. [voltar]
2 Segundo cópia extraída do livro MS "Annaes do Município de Mossamedes", de fls. 1 a 3-V, Annos de 1839 a 1849, especialmente para servir de informação ao autor deste ensaio - gentileza que devo ao chefe da Secretaria de Câmara Municipal de Moçamedes, Sr. Artur Trindade - "Mossamedes cuja bahia foi denominada - Angra do Negro - pelos nossos Navegadôres, foi mandada vezitar pelo Capital General d'Angola Barão de Mossamedes, cuja comissão foi incumbida ao Capitão Mór de Benguella que aqui veio com forças por terra, e a este facto deve a sua denominação. Embora a dacta do seu descobrimento seja muito antiga, o princípio de sua povoação dacta de 1939. Neste anno veio de Banguella a Quillengues, e de aqui a Huilla, Jau, e depois a Mossamedes o Tenente de Artilheiria João Francisco Garcia, onde já achou fundeada no porto a Corveta Izabel Maria commandada por Pedro Alexandrino da Cunha Garcia vinha nomeado Regente. Já então existia no local que hoje se chama - Hortas - huma feitoria bem montada pertencente a Jacomo Fellipe Torres, de Benguella, administrada por hum homem de sobrenome Guimarães, que fazia muito negócio, e se achava acreditada com o gentio, o que lhe accarretou tal perseguição que foi prezo na mesma Corveta para Loanda roubando-se-lhe e destruindo a feitoria. Jacomo protestou contra a violencia, e obteve justiça, mas não reparação. Apezar deste accontecimento ainda assim veio em 1840 Clemente Eleutherio Freire montar outra feitoria de sociedade sociedade com D. Anna Ubertal de Loanda, e em 1843 veio pois veio João Antônio de Magalhães estabelecer outra feitoria de sociedade com Augusto Garrido; porem de todas estas feitorias so existe hoje a de Fernanda, por se ter fundado na pesca e dedicado também à cultura. Começou pois esta povoação por hum presidio em que alem da força millitar e degredados se estabelecêrão algumas feitorias, e d'entre alguns de seus administradôres taes como Fernanda e Freire; bem como o Tenente de Marinha A. S. De Souza Soares de Andreas, e Commandante do Brigue "Tejo", e sua guarnição foi que nascerão os primeiros ensaios da Agricultura. A força de vegetação que se conheceo em algumas sementes lançadas à terra, a descripção feita por alguns officiaes de Marinha; e a benignidade do clima fizerão suscitar a idea da colonização deste local por gente não degredada. Os partidos politicos do Brazil, principalmente em Pernambuco, tendo sempre por fim a maior ou menor perseguição aos Portuguezes alli residentes desgostarão estes, e muito concorreo tal perseguição para fornecer a idea de colonizar Mossamedes; as expozições que de Pernambuco se fizerão para o Governo Portuguez sendo acolhidas, este deu providencias para se transportarem colonos Portuguezes do Brazil para Mossamedes. Em Maio de 1849 sahirão o Brigue Douro e a Barca Tentativa Feliz da barra de Pernambuco; e em 4 de Agosto do mesmo ano chegarão a Mossamedes transportando famillias e homens solteiros de todas as classes e idades; sendo todas as despezas feitas à custa do Governo ( Ate aqui seguimos huma memoria fornecida a esta Câmara pelo cidadão Bernardino Freire de Figueiredo Abreu e Castro, a qual por sêr bastante extensa deixamos de transcrever; e continuaremos a approveitar d'ella o que julgar-mos necessário e util. A ditta memoria acha-se archivada n'esta Camara, onde pode ser consultada). Em 13 de Outubro de 1850 huma outra expedição deixava as agoas de Pernambuco a bordo do Brigue Douro, e da Barca Bracharense que se denominou segunda colónia; cujo transporte e despezas forão feitas à custa de huma subscripção Portugueza, e que apezar das notícias a drede espalhadas por meio de carta hidas de Massamedes na "Escuna Maria" que fazião huma descripção miseravel, e infelizmente verdadeira naquella epoca, deste estabelecimento, não deixou de ser numeroza; aportando a Mossamedes a 26 de Novembro do ditto anno. Estes segundos colonos que deixando Pernambuco em hum estado mais calmo do que aquelle em que deixarão os primeiros de seus compatriotas, e que por conseguinte vivião já em melhor tranquilidade vierão achar aquelles em hum estado deploravel, e faltos de animo. Huma esterilidade espantoza motivada pela secca; pessimo sustento composto de má farinha de mandioca, feijão pôdre, etc. Huma nudez quazi completa, e finalmente hum completo exaspêro, a ponto de muitos se julgarem felizes com a praça que se lhe assentava em recompensa de tantas privações! Quinze mezes erão passados, e nesta epoca de esterilidade que poderia fazer-se? Alem da secca, faltavão sementes; o directôr da colonia foi a Loanda levando em sua companhia hum colono (Francisco da Maia Barreto); este foi ao Bengo, e de alli trouxe as primeiras sementes de cana, maniva etc., e pouco antes da chegada destas chegárão algumas sementes ao cidadão Fernando Joze Cardozo Guimarães que forão plantadas (a canna) sob a direcção do colono Joze de Albuquerque na horta daquelle senhôr, e foi d'estas sementes que se crearão viveiros para os annos fucturos. Foi ainda nesta epoca de verdadeira calamidade que chegárão mais colonos do Rio de Janeiro, e Bahia, dos quais ficárão mui poucos por falta de recursos; entre os desta ultima cidade alguns vinhão que trazião capitaes e querião ficar para negociar, o que não seria pequena vantagem; infelizmente fôrão disso despersuadidos. A este facto, e ao de terem-se escripto d'aqui pessimas noticias para o Brazil se deve o não terem continuado a aportar aqui colonos vindos à sua custa; - mas como virião elles se para alli se escrevia dizendo-o clima é pessimo - he um lugar de degredados onde sômos tractados como taes ( e em parte havia razão para o dizer) - he peor que na Ilha de Fernando de Noronha - não nos deixão de aqui sahir sem completar 10 annos - e outras muitas couzas? Dizemos que em parte tinhão razão por que a mortandade foi espantoza nos primeiros dois annos: Colono houve que foi 10 e 15 vezes ao Hospital em hum anno, donde sahia como entrava por falta de tratamento! Como não seria grande a mortandade se pessoas que habituadas a hum tratamento regular vivião agora a meia ração, e esta muitas vezes damnificada? Se hum lugar pouco salubre como o Bumbo em quanto que a chuva cahia a jorros se achavão miseros infelizes debaixo de alguns ramos aquentando-se a huma fogueira sem roupa para cobrir-se, por que muitos a deixarão no Estabelecimento por falta de conductôres quando para alli fôrão; tendo tido huma penosa viagem a pé por caminhos quazi intranzitaveis sem poder suportar o calôr de huma areia quazi ardente? Examine-se um pequeno numero de artistas e outras pessoas, que puderão sustentar-se com hum alimento mais saudável, e que não passarão essas privações, e vêr-se la que não tiverão até hoje huma baixa ao Hospital, e alguns dos quaes no decurso de seis annos não sofrêrão ainda huma intermittente; e examine-se tambem essas pessoas que aqui chegão do Reino ou do Brazil, e que não soffrem essas privações; veja-se a sua robustez, e conhecer-se ha esta verdade. Foi em consequência dessas privações que alguns colonos fugirão da Huilla, e que hum melhor futuro fez volver ou trazer a Mossamedes, porque desde o momento que os colonos podérão sustentar-se à sua custa, desaparecêrão essas molestias, e Mossamedes de hoje (1870?) he hum Paraizo comparada ao de 1850. Se nos demorarmos em mencionar este facto he porque julgamos de interesse e seu conhecimento no fucturo; he porque sômos Portuguezes, e desejamos que se saiba no Brasil, em Portugal, e se possivel fôr em todo o mundo, que o clima de Mossamedes he melhór do que o de toda a Africa; superior ao de todo o Brazil; superiôr ao de muitos lugares de Portugal, e quazi igual ao melhor e mais temperado deste ultimo paiz; e desejamos emfim que se desvaneção esses restos de receio de vir aqui habitar; porque só assim e com hum governo poderemos prosperar; e para prova do que acabamos de dizer deste clima salutar examine-se ainda essas crianças nascidas e creadas aqui; a sua robustez, e sobre tudo essa côr purpurina de suas faces, huma grande parte das quaes vive continuamente exposta aos raios abrazadôres do sol!".
Segundo cópia extraída do livro "ANNAES DO MUNICIPIO DE MOSSAMEDES", DE FLS. 41 E 41-V, ANNOS de 1839 A 1856, é o seguinte o "REZUMO DOS FOGOS, POPULAÇÃO, E PREDIOS URBANOS, CONCLUIDOS E EM CONSTRUCÇÃO NA VILLA, E ARREBALDES, ATE AO FIM DO ANNO DE 1856", isto é, sete anos depois da chegada à África dos primeiros "brasileiros";
FOGOS
Na Villa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
No local das Hortas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Na Bôa Esperança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Na Bôa Vista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
Nos Cavalleiros e Macalla. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
Total 85

POPULAÇÃO LIVRE
Sexo masculino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164
Ditto femenino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .108
Total 272

POPULAÇÃO ESCRAVA
Sexo masculino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .475
Ditto femenino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .157
Total 632
54 Libertos do dois sexos.

PRÉDIOS CONCLUIDOS
Na Villa
De pedra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36
De adobe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . 8
De pau a pique. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
Cubatas de palha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10 76
Nas Hortas e Aguada
De adobe.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
Cubatas de palha e pau a pique.. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 4 10
Na Boa Esperança
De adobe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 20
De pau a pique. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 27
Boa Vista
De adobe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . - 2
Nos Cavalleiros e Macalla
De pedra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
De adobe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . 2 3

PRÉDIOS EM CONSTRUÇÃO
Na Villa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12
Nas Hortas... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
Na Boa Esperança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 19
Engenhos
Nos Cavalleiros (montado). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1

Ao que se deve acrescentar o seguinte "REZUMO DOS PRODUCTOS AGRICOLAS DURANTE O ANNO DE 1856":
Assucar 178 As Vendeu-se de 7.200 a 9.000 Rs. a. a.
Algodão 1.672 As. Regulou 600 reis por a. em carôço
Aguardente 41 ½ pipas Em todo o Districto

Aboboras 400 Somente de hum arimo
Batatas 5.405 As. Pode avaliar-se em mais um têrço
Bananas 400 cachos Somente de um arimo
Cará 4.247 As. Pode avaliar-se em mais um têrço
;Canna sacha 14 milheiros Regulou 20$ reis o milheiro
Farª de mandioca 8:170 Cazungueis. Pode avaliar-se em mais um têrço
Feijão 128 Dittos
Milho 813 Dittos
Azeite de carrapata Peqª quantidade
Hortaliças - grande quantidade"

E, ainda, êste, de "PRODUCTOS DE INDUSTRIA":
"Carne secca 612 as. Só em um estabelecimento e até agosto
Couros de boi 112 Só em um estabelecimento e até agosto
Peixe secco 12.600 Mattetes - Maior quantidade
Azeite de cação 206 pipas Ditto. . .ditto
Tijollo. . . . . . . . . 21 milheiros
Cal. . . . . . . . . . . . . 56 moiosAdobe. . . . . . . . . . 60 milheiros"

"Também êstes informes, que foram extraídos de livros MSS, hoje do arquivo da Câmara Municipal, devemo-los à gentileza do chefe da Secretaria da mesma Câmara, Sr. Artur Trindade".
São vários os amigos portuguêses do Oriente e da África a quem devo agradecimentos pelo modo por que me facilitaram a colheita de documentos e fotografias sôbre êste e outros assuntos luso-tropicais, afins do versado neste pequeno ensaio.
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3 Manuel Júlio Mendonça Torres - O Distrito de Moçamedes nas fases da Origem e da Primeira Organização, (1485 - 1859), Lisboa 1950, pag. 511 [voltar]
4 Negro Anthology, organizada por Nancy Cunard, Londres 1934, pag. 679. [voltar]
5 Negro Anthology, cit., pag. 688. [voltar]
6Londres, 1951, Pag. 137. [voltar]
7 Londres, Nova Iorque e Toronto, 1949, pag. 55. [voltar]

Fonte: FREYRE. Gilberto. Em tôrno de alguns túmulos afro-cristãos. Salvador: Livraria Progresso; Editora e Universidade da Bahia, [1959]. 88p. il. (Coleção de estudos brasileiros. Série Marajoara, n.26).

sexta-feira, 28 de março de 2008

«A caça e a protecção da fauna em Angola» de Silvestre Newton da Silva



Silvestre Newton Tomé Dias Da Silva
Silvestre Tomé Dias Newton Da Silva







O moçamedense António A. M. Cristão, publicou no seu livro «Memórias de Angra do Negro -Namibe- Angola», uma crónica assinada por Silvestre Newton da Silva que representa uma sentida alusão aos vândalos e caçadores furtivos que já nessa altura (1958) vinham dizimando a fauna do Deserto do Namibe, em busca de troféus que, segundo autor, para nada mais serviam que a serem exibidos a ingénuos pacóvios...                              

Silvestre Newton da Silva foi um jornalista profissional que a determinada altura abandonou o jornalismo para se tornar Gerente do Banco de Angola em Moçâmedes, e posteriormente
abandonou o Banco de Angola para, juntamente com Raúl Radich Júnior, criar a empresa Cicorel que se dedicava ao comércio, à construção civil e à industria extractiva de mármores e granitos. Foi graças a esta empresa que os mármores e granitos de Moçâmedes se tornaram conhecidos além fronteiras, e que vendidos em bruto, chegaram a ser em seguida transaccionados, dada a sua qualidade, como se de mármores de Carrara se tratasse.
 
 
Eis a crónica de Newton da Silva:                            











«A caça e a protecção da fauna em Angola»

Silvestre Tomé Newton da Silva, Lisboa 1958
... Minha pobre Angola, como eu te lamento!
Quando todos te incensam e exaltam, te rendem homenagens e te levantam aos píncaros da lua; quando todos festejam ruidosamente a tua riqueza, o teu progresso, as realidades do teu presente e as promessas do teu futuro; quando todos enaltecem e põem em relevo o surto da tua economia, as realizações do teu fomento, a segurança das tuas finanças; quando todos apontam ao mundo, atento e interessado, a multiplicação das tuas obras portuárias e os teus aproveitamentos hidroeléctricos, a expansão das tuas vias férreas e a renovação da tua rede rodoviária; quando todos e extasiam perante o nível montante das tuas exportações, e falam respeitosamente do café e dos ouros frutos da tua agricultura, dos diamantes, do manganês, e de outros tesouros escondidos no teu seio, das farinhas de peixe e da generosidade do teu mar; quando todos calculam, conjecturam e fantasiam o que virá a suceder depois que das enanhas do teu solo comece a jorrar em caudais esse sangue milagroso da terra, que é o petróleo; quando todos- e com quanta razão, com que justificado optimismo – te auguram um destino de esplendor, eu, minha querida Angola, sinto-me triste. Sinto-me triste, por ti e por mim.
                                                                                   
 
 
Não há dúvidas de que rica és muito mais rica, muito mais próspera, muito mais civilizada serás em breve. A ocupação do teu território e o seu desenvolvimento económico processam-se em ritmo acelerado; as tuas idades e as tuas vilas crescem como cogumelos; as tuas industrias expandem-se e cada dia são mais numerosas as enxada e as máquinas que rasgam a tua terra para nela lançarem a semente ou dela arrancarem o minério; não cessa de engrossar o rio de gente que aqui desagua e aqui vem perpetuar Portugal , e os colonatos, com as suas aldeias beiroas e transmontanas, as suas capelas e pelourinhos, o fumo dos casais subindo no ar tranquilo o lavrador tisnado que regressa a casa tocando à sua frente os bois que todo o dia charruam, podem bem ser a antecipação de uma Angola portentosa, consistência harmónica e prolífica de portugueses brancos e de portugueses pretos, verdadeira concretização do génio universalista e povoador da grei.

Vais ver, minha pobre Angola, muito rica, muito próspera, muito povoada, muito civilizada: - mas a tua beleza primeva, aquela que Deus te deu, a tua graça original o encanto da tua juventude, o deslumbramento da tua virgindade, tudo isso vai assando, rapidamente se vai extinguindo e desaparecendo. A pouco e pouco, hoje aqui, amanhã acolá, as tuas mata vão caindo, os teus matagais vão sendo desbravados e arroteadas, a tua chanas pastadas e pisoteadas por gados cada dia mais numerosos. As estradas e as picadas, tentacularmente, penetram até ao âmago dos teus mais recônditos sertões, e os jipes, desprezando-as, cortam a meio, por montes e vales, florestas e desertos, atravessando mulolas e dambas, vencendo todas as dificuldades, superando todo os obstáculos, atingindo os teus últimos recessos, desvendando os teus mais íntimos segredos. Sobre as rodas do teu corpo a motor, potente e velocíssimo, o Progresso avança, infatigável e inexorável, talando-te de lés a lés. Mais atrás dele, com atrás do carro dos triunfadores romanos, dir-se-ia que também uma voz vai murmurando, para ti o momento! Terrível e fatal de todas as fragilidades. De há muito que, em contacto com a civilização do branco, começaram a abastardar-se e a uniformizar-se os costumes e a indumentária dos nativos. De vastas regiões da província desapareceu já, por completo o indígena típico na sua quase nudez ancestral, e foi substituído pelo «calcinhas» anódimo e amorfo, tantas vezes caricato no que destoa do meio ambiente. Os penteados das mulheres, tão variados, tão ricos e tão fantasistas, sobretudo no sul, entrelaçados de conchas ou de missangas multicores, afeiçoados à força do barro ou de gunde, às formas mais caprichosas e espectaculares, vão cedendo o passo as carapinhas incaracterísticas, como incaracterísticos são os panos sujos de riscado e de chita que em grande parte substituem já os cintos coloridos, os aventai de peles de bichos, os grossos colares de contas, as pesadas pulseiras de latão. Para bem ou para mal – quem sabe? – a cultura indígena viu-se transformando, já em boa arte se transformou, como diz Gilberto Freire, em material de museu. E com essa transformação, tu vais perdendo, minha pobre Angola, alguma coisa do teu encanto, todo o teu pitoresco, tua frescura singular e primitiva. Ernesto de Vilhena, em arguta crítica ao sociólogo brasileiro que acabo de citar, faz uma análise profunda e subtil dos sintomas que levam, a ele próprio ao diagnóstico da «destropicalização do continente africano». Essa destropicalização tem sido em ti marcada, nos últimos vinte e cinco anos, que no domínio do material e do físico, quer no campo do espiritual. Mudança climatérica, alteradora das condições das condições de adaptação a meio e de vida nele? Simples reviravolta na atitude psicológica do europeu para com os chamados climas quentes, relaxamento da sua desconfiança e íntima reacção perante o pão da Costa de Africa? Já Marston Bates, o naturalista americano, num livro substancial, inverte a tradicional classificação dos climas, dando o nome de zonas «intemperadas» às compreendidas entre os trópicos e os círculos polares, onde o mercúrio dos termómetros passeia a escala toda, ao sabor das estações, e o de «temperadas» where winter never comes. 
                                                                                      

De qualquer forma e feitio, o que é certo, o que já é bem patente e real, é que tu, minha pobre Angola, estás perdendo aceleradamente tudo aquilo que, para gente cansada da monotonia frenética da vida metropolitana, constituía o teu maior atractivo e te nimbava de imprevisto e aventura. E uma coisa, acima de toda s mais, está assassinando a tua beleza, despojando-te dos teus melhores atavios, privando-te das tuas melhores galas: a destruição da tua grande fauna selvagem. Ao curso do progresso, não há Josué que o detenha, e mesmo o mais acérrimo proteccionista tem de reconhecer e admitir que perante as suas inelutáveis exigências e em face do interesse humano, a natureza tem de ir cedendo o passo e entregando novas extensões, até então bravia e inexploradas, à actividades e necessidades de uma crescente população. De acordo, inteiramente de acordo, mas como dizia o velho Horácio, est modus in rebus. Para que os teus fados se cumpram e o teu destino se integre será realmente indispensável que a tua fauna selvagem seja dizimada e exterminada, e que, mesmo nas lonjuras onde nem branco nem preto esgaravata o pãozinho de cada dia, se vá desfazendo, antecipadamente, o vazio e a desolação? O espectáculo maravilhoso das umas chanas, cobertas de milhares de antílopes, pertence ao assado. Muitas das tuas espécies estão ameaçadas de extinção. E por toda a parte é igualmente confrangedora a verificação de que os animais selvagens, acossados e perseguidos sem descanso, noite e dia, nos trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano, correm em loucas correrias mal avistam gente ou carro, mesmo a um ou dois quilómetros de distância.Dentro de dez, de quinze ou vinte anos, e a manterem-se as condições actuais, as probabilidades de se encontrar, percorrendo-te, qualquer exemplar da tua fauna mais nobre, serão as mesmas de quem procurar uma agulha em palheiro. Para se ver animais de grande porte, só em reserva e parques, se umas e outros forem eficazmente defendidos e se uma crescente pressão económica e o jogo dos interesses particulares se não coligarem em luta de morte para as fazer distinguir e desaparecer.

E assim, minha pobre Angola, tu a rica, tu a esperançosa, tu a civilizada, muito em breve, a par das tuas riquezas, da tua prosperidade, do teu progresso, mostrarás também ao mundo a nudez das tuas matas, o vasto das tuas chanas, a desolação e o barbarismo da tua fauna sacrificada, destruida e exterminada. Dela restar-te-hão apenas, a dolorosa recordação, um pungente e inútil arrependimentoe uma emissão de selos. E os únicos caçadores, e os únicos amadores da tua natureza selvagem virão a ser ... os filatelistas.

Atingirás assim, possivelmente, um alto grau de civilização, imitando o que se praticou em países altamente civilizados, copiando o exemplo da Africa do Sul e dos Estados Unidos, onde as espécies maiores só subsistem, e em reduzidos números, em áreas de protecção. Não te ambiciono um tal sucesso, e julgo que nós, portugueses, que já soubemos dar ao mundo o espectáculo dignamente humano da perfeita integração de muitas e desvairadas gentes no seio da nossa própria grei, somos também capazes de lhe mostrar que compreendemos, melhor do que foi por outros compreendido, o carácter sagrado do quinhão que nos coube nas maravilhas da Natureza. Pelo que respeita á tua fauna, chegaste agora a um ponto crucial:- ainda estás muitíssimo a tempo de a salvar mas também a podes perder sem remissão. O desbaste sofrido pelos animais de caça, sobretudo desde a última guerra, não foi ainda tão profundo e radical que tenha invalidado quaisquer possibilidades de recuperação. Se as zonas mais acessíveis e frequentadas viram diminuir, de forma assustadora a sua população animal selvagem, noutros pontos, mais afastados e menos transitáveis, ela conserva ainda uma densidade suficiente, para garantir, à la longue, e por extravasamento, o repovoamento daquelas. Mas se continuar a caçar-se, como até agora se tem feito e a compasso do teu desenvolvimento económico não formos tomando todas as medidas e precauções convenientes, então, minha pobre Angola, a tua fauna virá a ter a mesma sorte mofina que já liquidou a de tantas outras regiões do globo.Parques, onde as tuas espécies se conservem e perpetuem em total segurança, não tens. Leis que as protejam, ninguém as cumpre, poucos as fazem cumprir; vozes que te defendam, são poucas e fracas, como a minha. Mas porque gosto de ti, porque há longos e longos anos me dás pão que como e em ti criei raízes e família, não quero, com o meu silêncio, por comodismo ou cobardia, tornar-me cúmplice do crime. Desculpa, minha querida Angola, ter-me eu próprio nomeado advogado ad-hoc. Merecias muito melhor, quem com mais competência, verdadeiro saber e brilho, defendesse a tua causa. Tão abandonada estás, porém, que tens de te contentarte com o pouco que te posso dar, e esse pouco é este livro em que procuro mostrar os males que te ameaçam e apontar alguns dos remédios que poderão dar-lhes cura.Não alimentes grandes esperanças, da mesa que te escrevo, olhando atrás das minhas janelas, vejo areia, uma enorme extensão de areia que morre na linha do horizonte. Para lá dessa linha, e até ao novo horizonte, e ainda para além, mais areia, sempre mais areia, só areia. É o deserto de Moçâmedes. E aperta-se-me o coração ao pensar que a minha possa ser também, sem eco e sem proveito,uma voz clamando no deserto, Deus permitirá, no entanto, por ti, por mim, por todos nós, que assim não seja.







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Angola - Moçâmedes, minha terra, eu te vi crescer... (Raul Ferreira Trindade)



Moçâmedes em finais do século XIX

 

 Moçâmedes na década de 1960




Angola - Moçâmedes, minha terra, eu te vi crescer...

4 de Agosto 1848 - 4 de Agosto 1991

A historia de uma nação ou de um povo conta-se escrevendo-se seus feitos epopeicos, ou pela voz do povo, directamente, passando de gerações a gerações, de pais para filhos e netos.

Não pretendo ser historiador, mesmo porque não possuo capacidade intelectual para tanto. Se recordar é viver, pretendo, sim, modestamente, como voz do povo, recordar saudosamente com este meu simples escrito como e porque deixei a minha terra - Moçâmedes, hoje com mais um aniversário e que por isso a homenageio.

Nasci em Moçâmedes, nela vivi toda a minha vida até ao agitado ano de 1974, quando de lá tive de sair. Meus pais, no ano de 1898, vindos de Lisboa, para lá foram voluntariamente à procura duma nova vida, ele deixando Portugal, o seu posto de oficial do exército, a sua familia materna e paterna e os muitos amigos que tinha nos seus companheiros de curso da Escola Politécnica e no Colégio Militar.

Escolheram para sua fixação o litoral mais ao sul de Angola - Moçâmedes -. Levaram consigo a firme vontade de conhecerem novas terras, novos mundos, para iniciarem uma outra vida de trabalho que embora soubessem muito difícil , a sua fé lhes trazia a esperança de que seriam protegidos por aquela «estrela» que o destino lhes colocara na frente do caminho que percorreram sobre o Atlântico que divide e distancia os dois continentes.

E chegaram. Chegaram à terra onde eu e os meus irmãos havíamos de mais tarde nascer. Chegaram como sessenta anos antes o haviam feito, mas em condições bem mais difíceis então, aqueles portugueses que formaram a 1ª colónia.

Reportando-me àqueles valorosos portugueses da 1ª colónia, diria que, quando em 4 de Agosto de 1849 a Moçâmedes chegaram, vindos de Pernambuco, fugidos da perseguição que a política os ameaçava na altura naquelas terras brasileiras, viram então o primeiro contraste da beleza africana; dum lado as praias limpas e o mar espumoso e frenético de onde desembarcaram, de outro o deserto calmo e sem fim, que, começando nos quentes areais do Namibe se estendiam pelo incomensurável Calahari. - NAMIBE onde a Welwitschia Mirabilis, planta exótica, testemunhava a sua existência como um símbolo de natureza única no mundo.

A Welwitschia Mirabilis, planta estranha, surgiu-lhes então como único habitante solitário do deserto do Namibe. Os indígenas deram-lhe o nome de Tomboa. Planta com uma existência mais duradoura que a vida humana, algumas delas multiseculares, atingem grandes proporções com as suas folhas coreáceas que se espreguiçam sobre as areias quentes do deserto e chegam a atingir três metros de comprimento. . Água, é coisa que o deserto não lhe dá. Resiste à inclemência triturante dos raios solares do deserto.

Não encontraram aqueles primeiros portugueses nada de civilização no litoral moçamedense. O gentio estava longe, à época, nas pedras e rochedos da costa, nas «chunas» do sertão ou em terras altas do planalto, vivendo na sua condição de povo bárbaro, em pequenos núcleos, protegido e conservado pela própria natureza. A sua existência - Mucuisses, Croques, Muximbas - dava-os como vindos outrora de ciclos migratórios da Asia para o continente africano, talvez descendentes dos «bantus».

Vida dura, difícil, angustiante, pois, vieram esses bravos portugueses encontrar nas praias da minha terra: o mar imenso, o reluzir brilhante das enganadoras «miragens» do deserto, o sol escaldante, a escuridão da noite negra africana, davam-lhes o verdadeiro cenário da terra onde se fixavam, onde teriam que trabalhar.

Ficaram. E construindo suas palhotas para se poderem abrigar ou nos morros fazendo seus minúsculos quartos improvisados, de que ainda hoje vestígios se encontram; cavando na terra, aqui e acolá, a água doce de que careciam, do mar tirando o peixe e da caça procurando a carne, deitaram semente à terra. Lenta mas progressivamente viram nascer assim a esperança dum dia melhor no futuro.

Com o seu espírito aventureiro, destemido, próprio da raça Lusitana, mais portugueses vieram seguidamente, homens, mulheres e crianças, por barcos demandados, na sua maioria, dos lugares do Algarve para o Sul de Angola, viajando também sob a mesma «estrela» milagrosa do seu destino rumo àquelas terras onde em 1486 Diogo Cão havia colocado o Padrão simbolizando a sua descoberta e presença ali, nos seus descobrimentos marítimos.

Embrenhando-se audaciosamente nos rochedos da costa, nas margens do Curoca, do Giraúl, do Cunene, das «chunas» do sertão, no planalto, lugares à época distantes, encontraram o gentio, nómado e pastoril, selvagem de linguagem esquisita e incompreensível no seu todo; criaram a confiança necessária para se entenderem como seres humanos, embora com todas as dificuldades dialécticas, e iniciaram assim a permuta dos géneros e artigos de que tanto careciam para o seu viver. Desse entendimento natural e necessário, que o tempo e confiança mútua faziam progredir, o gentio aproximou-se do litoral moçamedense e começou a aceitar os primeiros contactos validos com a civilização trazida pelos portugueses.

Pouco tempo depois da sua chegada ao sul de Angola, a Moçâmedes, esses portugueses dedicaram-se à industria da pesca de que, mesmo na sua fase embriatória, começaram a receber vantagens relativamente compensadoras.

Em 1853, embora rudimentares e poucas, possuiam já instalações de pesca, e em 1859 tinham em funcionamento 22 pescarias espalhadas pelas praias de Moçâmedes, doze baleeiras e 42 escaleres. Laboravam o pescado escalando-o; nos seus quintais expunham o peixe ao sol para secá-lo, e recolhiam-no depois de seco em improvisados armazéns.

Curioso é notar, que já naquele ano, além de se dedicarem à preparação do pescado, fabricavam também azeite em boa qualidade, extraido de fígado de cação.
Segundo elementos extraídos no ano de q859 venderam eles 10 323 «motetes» de peixe seco pelo valor de 5oo réis cada, rendendo 5.160,00. Mas no ano anterior haviam já exportado e vendido 21.500 «motetes» no montante de 10,750 réis.

Foi assim, pois, que começou na minha terra -Moçâmedes- o interesse pela industria piscatória, graças a um mar tão rico de todas as espécies piscicolas necessárias a uma industria que, pelo seu desenvolvimento, mais tarde havia de ser das mais importantes de toda a Angola e de todo o continente africano.

Cento e vinte e três anos depois da chegada a Moçâmedes dos primeiros portuguesas que alí se fixaram, o progresso e desenvolvimento daquele território sul, no ano de 1974, era de facto muito importante. Moçâmedes, Porto Alexandre, Baía dos Tigres e Luciras puderam bem confirmar o seu grande peso na balança económica de Angola, pois possuiam então, em plena laboração, dezenas de modernas e importantes fábricas mecânicas de farinhas e óleos de peixe e de conservas de peixe espalhadas por todo o distrito. Os seus proprietários e industriais, desdendentes, em parte, daqueles valorosos pioneiros de 1849, e seguintes, colocaram esta indúatria, pelo seu esforço e trabalho constantes, a par das mais modernas unidades fabeis do mundo.

Mas, antes da chegada a Moçâmedes da 1ª Colónia de Portugueses, em 1849, já Luanda havia sido fundada por Paulo Dias de Novais, em 1576, e Benguela por Manuel Cerveira Pereira, em 1603. Portanto, Luanda, em 1974, teria 398 anos e Benguela 371 anos de fundação, já com industrias e comércio importantes. A falta de navegação dificultou durante longo tempo o intercâmbio entre o litoral Sul de Angola, especialmente com Luanda. Só em 1858, a 14 de Novembro, chegava a Moçâmedes o primeiro navio a vapor, pertença da Companhia União Mercantil, de Lisboa.

Assim, em 1974, Angola mercê das suas grandes e importantes industrias, de um comércio sólido, do intercâmbio com o exterior na exportação e importação de sem número de produtos e artigos, estava no auge do progresso. A sua vasta superfície de 1. 246.700 kms. quadrados compreendia em si vários distritos e concelhos integrados administrativamente no Uige, Quanza Norte, Malange, Benguela, Quanza Sul, Huambo, Bié, Moxico, Quando Cubango, Huila, Moçâmedes, Cunene, Cabinda, com a capital em Luanda. Com a parte literol mais insalubre e no interior com terras altas possuindo regiões saudáveis e territórios muito férteis; grandes rios como o Zaire, Cunene, Quanza, e outros, fauna abundante de espécies cinegéticas e flora muito rica, Angola era como uma dádiva que a natureza premiara seus filhos e habitantes que a quizessem trabalhar e desenvolver. O café, algodão, borracha, cacau, arroz, tabaco, sisal, milho, centeio, madeiras, sal, e tantos outros o solo dava; o diamante, o ouro, cobre, ferro, mármores, petróleo e outros minérios o sub-solo dava; o peixe e seus derivados, o gado bovino, , ovino, caprino e suíno, e tudo isto am abundância havia que o mae e a terra pródiga dava aos seus habitantes o previlégio de explorar. como se explorava já em grandes proporções e dimensão industrial. Sempre as chuvas foram pródigas e regulares em quase todo o território, à excepção da parte desértica do sul.

Um dos exemplos, também flagrante, do desenvolvimento de Angola, foi a acção dos serviços de Veterinária e de Agricultura, de que os indigenas muito beneficiaram e aprenderam ao longo dos anos. ~~Com vista ao fomento pecuário, os Serviços de Veterinária de Angola, através de técnicos competentes, colocados de norte a sul da Província, tiveram junto das populações rurais uma grande influância no desenvolvimento e saneamento da sua criação bovina, ovina, caprina e suina. Embrenhando-se esses técnicos nas matas isoladas, principalmente dos planaltos mais beneficiados pelas chuvas, o indigena começou, assim, a sentir o efeito desse benefício para as suas manadas de gado, em que antes as doenças grassantes das regiões dizimavam centenas e centenas de animais, anualmente.

A criação de grandes estações zootécnicas, de postos de reprodução e vacinação e tanques insecticidas em regiões onde predominava a riqueza pecuária, foi um plano de fomento que em muito contribuiu para desenvolver as espécies bovina, ovina, caprina e suina. Esses estabelecimentos principais existiam na Humpata com a Estação Zootécnica da Sul , o mais importante no Cáfu (Cuanhama), na Ganda e em Quilengues, independentemente de outros designados por Postos. Aos indígenas eram periodicamente distribuidos reprodutores de elite ,com a finalidade de carne ou leite.

A esses Postos e Tanques os indígenas levavam as suas manadas de gado para cobrição e desparasitação beneficiando de serviços gratuitos. Brigadas de técnicos realizavam campanhas de vacinação contra as doenças que mais grassavam nas regiões, sempre a título gracioso para as camadas rurais. e havia já criadores indígenas, principalmente nas regiões do Cuanhama e Quilengues, no distrito da Huila, com bons efectivos de gado seu. No Cuanhama, um desses detentores de gado, quando morreu, deixou à família cerca de 1 500 bovinos, 1500 caprinos e duas ou três dezenas de cavalos e suinos, segundo me foi declarado. na região, quando por lá passei. Procurando estimular o trabalhador indígena rural, no desenvolvimento da sua pecuária, o governo nunca incidiu impostos sobre os seus rendimentos. Sim, porque eles também vendiam ao negociante branco, anualmente, centenas de cabeças de seus efectivos.

Mesmo no deserto de Moçâmedes, como exemplo do espírito de iniciativa dos portugueses, região onde, pela sua natureza, não chovia e não havia praticamente vegetação, mas sim um sol abrazador, os Serviços de Veterinária anuiram à constante insistência de um seu técnico veterinário, muito conhecido e competente em Angola, o qual contra todos os revezes que inicialmente lhe surgiram, como eu próprio o sei, conseguiu vencê-los, levou àvante o programa de fomento que projectara e criou, assim nesse deserto, digamos, o Posto Experimental do Karacul, ou seja a exploração e desenvolvimento da raça ovina Karakul, muito rica na sua pele, procurada e aplicada na confecção dos famosos casacos. Desse êxito resultou que outros criadores de gado da região ao longo da linha férre Moçâmedes-Sá da Bandeira se dedicassem também, e simultaneamente na exploração do Karakul, sob a orientação técnica do referido veterinário que assim trouxe às terras de Moçâmedse, uma riqueza mais e que muito valorizou o Sul de Angola, na sua pecuária,

Importante também, foi a cção dos Caminhos de Ferro de Luanda a Malange, de Benguela a Nova Lisboa, de Moçâmedes ao Cuando Cubango, as chamadas terras do fim do mundo. Mais uma obra dos portugueses em Angola que assim penetraram pelo seu interior em centenas e centenas de linha férrea, coom isso levando às populações rurais, conjuntamente com uma extensa, larga e moderna rede re boas estradas asfaltadas, todos os produtos e artigos de que os seus habitantes careciam, e dando escoamento às suas colheitas do milho, sisal, algodão, etc.

Angola estava pois, em 1974, patente ao mundo, e esse mundo bem o sabia, como uma futura nação, com o seu potente manancial de riqueza e progresso. Era já o orgulho de todos os angolanos e não angolanos mas radicados há muito. A beleza das suas acolhedoras cidades nascidas do nada há centenas de anos e feitas com indomável força de vontade, coragem, amor, suor e lágrimas por aqueles homens, mulheres e crianças de então e com igual esforço do exemplo seguido pelos seus filhos, netos e bisnetos, toda ela deu a confirmação a esse mundo do que os portugueses foram e são capazes de realizar para bem desse mesmo mundo : a civilização.

Foram eles que à minha terra cgeharam um dia, nada viram senão terras desérticas, um sol escaldante e noites escuras de negro africano; se fixaram, trabalharam e venceram do nada fazendo tudo quanto foram deixando ao longo de anos e de séculos; que atrairam o gentio à verdadeira civilização, que o despertaram para um mundo diferente e melhor - o que a sua maioria aceitou e aproveitou totalmente, atraidos de satisfação, mas que a outra parte não aceitou e quiz manter-se como até hoje, naturalmente, no seu primitivismo habitat, ainda com usos e costumes ancestrais em alguns pontos mais isolados do território.

Um dia porém, volvidos séculos entre povos considerados como irmãos, com sangue branco misturado com o do negro , e uma percentagem já de descendentes mestiços; nesse dia em que sem racismo da parte branca -que nunca o teve- , em que dessa união deveria resultar o reconhecimento, a gratidão, uma maior apeoximação, defesa mútua e firme vontade de só os angolanos e portugueses continuarem em Angola, sem distinção de cor, para desenvolvê-la ainda mais - surge uma independência imposta a Portugal por três movimentos de guerrilha. Tudo certo, digo eu, se dessa independência se fizesse como se esperava, uma união sólida entre todos os filhos de Angola, negros, brancos e mestiços, e também dos já radicados há muitos anos, para assim se governar com justiça e respeito os destinos da terra que mais tarde poderia vir a ser das principais nações do vasto continente africano.

Mas, a ambição do homem, pior ainda, a influência estrangeira, cobiçando
há muito as terras da minha terra, conseguiu infiltrar-se no nosso meio, na nossa casa, conseguiu que dela saissem, como sairam, quase todos os portugueses que sempre viveram em comum com o povo negro desde séculos passados.

Considerei sempre essa independência embora necessária, sem dúvida - porque nós mesmos que deixámos Angola, seus filhos, por ela clamamos longo tempo antes -, como que a uma criança que nasce e que os pais querem que poucoos meses depois começe a andar pelos seus próprios pés, sem qualquer amparo. Claro, que depois a criança cai tantas vezes quanto a indiferença dos pais, aleija-se, perde a percepção das coisas mais próximas, estraga tudo o que é seu, e, pior ainda, o que mais pertence aos seus muitos irmãos...

Mas, porque se deixou fazer assim!?...

Concordo plenamente com a independência de Angola. Evidentemente, não se podia estar dependente dos «caprichos» do «Terreiro do Paço». Mas, assim, como foi feita tão precipitadamente, não. Com cabeça, tronco e membros, muito vbem, dando à criança recém-nascida a possibilidade de poder vir a andar sem «moletas», por seus próprios pés, à vontade, com liberdade, dois ou ês anos depois de nascida, com seus pais a orientá-la nesse percurso transitório. Cabe, pois, a esses «pais» toda a reponsabilidade do que inconscientemente fizeram com o abandono a que levou a sua ignorância.

O mal feiton e consentido não recaiu, afinal só sobre nós que deixamos Angola, e que paea Angola sempre quizemos uma independência. Recaiu sim, muito principalmente, sobre nós, numa agtação que nunca esperaram, numa situação que não merecem, porque a terra a terra tão rica e grande, já feita e desenvolvida que era, é deles, daquela verdadeira maioria. É desses milhões que poderiam constituir uma sociedade única, governá-la numa democracia plena, sem dependência de terceiros.

...Sai da minha terra, saudosa Moçâmedes em 1974, naquele periodo agitado que ela atravessou. Deixeia-a, confesso, com as lágrimas nos olhos. Ainda hoje as deito quando me recordo do meu passado, da minha terra natal e das suas gentes. Gentes que eu não distinguia da côr nem da religião, pois a prova mais flagrante disso, está no facto de entre tantos amigos meus, salientar sempre como principais familias, familias negras e mestiças que conheci e sempre convivi em franca comunhão de mesa, trabalho, amizade e respeito.

... Sai da minha terra, saudosa Moçâmedes, deixei Angola. Mas, antes já sentia saudades de tudo aquilo por que de saudades também se morre... E muito embora a agitação revolucionária reinasse em muitas cidades angolanas, eu me venturei, mesmo assim, antes de deixar aquela África, aventurei-me a visitar, mais uma vez, eu e aminha mulher, os seus principais centros populacionais. E fomos.

Deixando Moçâmedes, onde nascemos e vivemos entre o Atlântico e o Namibe tão grande de areias e de uma natureza que só «nós» a sentiamos mais e maravilhosamente quando conhecemos o Iona e o seu mundo de pedra e morros escuros, num labirinto enigmático. Passamos por Sá da Bandeira (Lubango), tão alta com a sua Senhora do Monte bafejando milagrosamente a terra de natureza próspera!... Que cidade tão linda e boa que seus filhos fizeram!... Andando num planalto imenso no meu Datsun velhinho mas afinado, sobre moderna estrada asfaltada, chegamos aNova Lisboa (Huambo), a talvez mais jovem das tantas cidades de Angola, centro de convergência comercial e turístico, tão grande e desenvolvida que a citavam como a futura capital!... E, sempre caminhando por moderna estrada asfaltada, passamos pela Cela, com as suas terras férteis, verdejantes, arrumadas. Desviando-nos, fomos até Novo Redondo e Gabela com as suas inesquecíveis cachoeiras. Surge-nos depois o Lobito com o mar a bafejá-la de um lado e de outro, porto que atraia diariamente a navegação e nacional e estrangeira , linda que era no seu todo, como um Presépio de Natal!...E a sua Benguela, ao lado, de tradições centenárias, de gente hospitaleira e boa, aliás, como em quase toda a Angola!...
Não pudemos vositar o Cuando Cubango, as terras do fim do mundo, onde eu anos antes havia estado de visita e trabalho.

O Moxico, a Lunda e Malange dos diamantes, e outras tantas, tão longe estávamos e o cansaço nos chegava. Seguimos, sim, rumo a Luanda, como terminou a nossa viagem de saudade, num adeus de despedida de Angola, num triste adeus para sempre... Luanda, grande capital, moderna e muito desenvolvida. Fora fundada por Paulo Dias de Novais, em 1576. Tomada por holandeses em 1861, voltou à posse dos portugueses em 1868 pelo comando de Salvador Correia de Sá e Benevides, que combateu os holandeses, expulsou-os e ocupou a cidade. Luanda, antiga e chais de contrastes, com os seus misteriosos musseques e rivalidades, labirintos de entradas fáceis como saídas difíceis - quem melhor que antanhos e seus filhos poderia edificar aquela cidade enorme?!...

Estas saudades que todos «nós» sentimos de Angola e da minha terra, são fruto de uma consciência limpa e honesta, nascida daquelas terras e das suas gentes, sem distinção de língua, credo ou côr. Estou crente de que hoje os que lá ficaram sentem de nós que viemos, o bem que deles sentimos ao recordá-los, naturalmente, sem excepções.

DEixei Luanda e a Minha terra para as terras de onde meus pais um dia sairam rumo ao Continente Africano, a Moçâmedes. E, curioso, foi sobre as mesmas águas do Atlântico que eu naveguei 76 anos depois deles o terem feito em 1898 tão corajosamente. Como eles, nada trouxe comigo senão a saudade da terra onde nasci. Tudo, embora não muito, lá deixei, porque a ambição dos homens, o seu egoísmo, a falta de consciência, a ingratidão, a falta de respeito, de civismo, de humanidade imperava naquela euforia desnorteada de 1974.

...Deixei Angola, deixei a minha terra, e apesar das saudades tantas que sinto de tudo aquilo, decorridos já doze anos, com a vida um pouco refeita e dada a condição política em que agora lá se vive, confesso sentir-me hoje melhor em Portugal, porque a democracia reina aqui, para todos, sem excepção.

Nova Oeiras, 4 de Agosto de 1991
Raul Ferreira Trindade